4 de jun. de 2010

Texto de Moacir dos Anjos para a exposição INDÍCIOS, Galeria Lurixs/ RJ, 2005













ÍNDICES, VESTÍGIOS, SINAIS


Os trabalhos de Marcone Moreira sugerem, desde o primeiro contato com eles travado, o cruzamento de referências distintas. Para alguns, talvez chame mais a atenção os vários planos que o artista constrói, sobre superfícies diversas, por meio do avizinhamento de um conjunto reduzido de cores. Para outros, é possível que despertem mais interesse os materiais toscos (quase sempre madeira gasta, às vezes também nylon, papelão ou ferro) e as formas variadas dos suportes desses campos cromáticos, tecendo incertezas sobre a natureza do que apresenta preso à parede ou apoiado sobre o piso. Ao observador culto, pode também parecer que há, na conformação geométrica das formas pintadas, uma filiação à tradição construtivista brasileira, a qual ainda ecoa, de maneiras variadas, em parcela significativa da produção visual contemporânea do país. Àquele que desconhece a história daquele projeto artístico e ético, contudo, os trabalhos podem corretamente evocar, ainda que de modo impreciso, vestígios de padrões vernaculares usados na decoração de veículos, brinquedos e fachadas de casas.

Também a fatura dos trabalhos de Marcone Moreira propõe dúvidas, a quem deles se acerca, sobre sua origem. Embora as formas pintadas pudessem, em tese, ter sido todas criadas pelo artista, o exame cuidadoso de suas superfícies expõe os sinais (tinta descascada, buracos de prego e parafuso, sobras de ferragem, recortes conhecidos) de que foram outras mãos que de fato montaram e pintaram, há um tempo variável e incerto, aquilo que apresenta como seus trabalhos. Em vez da pintura, portanto, são procedimentos de apropriação e justaposição de objetos ou de partes deles (ainda que a partir de um olhar carregado de interesse sobre o que está neles pintado ou tingido) que orientam sua prática criativa. Permeando toda sua produção, em poucos trabalhos essa operação construtiva fica mais evidente, entretanto, do que naqueles em que faz uso de pedaços coloridos de nylon, comumente usados como encostos e assentos de cadeiras ou para confeccionar sacolas.

Ao transformar esses restos (de portas, caixotes, carrocerias de caminhão, embarcações, telhados, móveis e outros objetos) em coisas novas, Marcone Moreira afirma, ademais, a dupla importância que o lugar onde vive – a cidade de Marabá (Pará), bem ao norte do país – possui para sua produção. Por um lado, é desse lugar de intensa movimentação de pessoas e cargas (lá se cruzam dois rios, a rodovia Transamazônica e a ferrovia Carajás) que vem quase todo o material – descarte de coisas que não possuem mais a sua funcionalidade original – que o artista seleciona, secciona, agrupa e resignifica como coisa sua. Por outro lado, por ser confluência de rotas diversas e de referências simbólicas irredutíveis a outras quaisquer, a dinâmica urbana de Marabá pode ser tomada como metáfora dos procedimentos construtivos que usa. Na cidade, assim como em sua obra, não há espaços para definições precisas de pertencimento ou de identidade, requerendo, dos seus habitantes (dele inclusive), a realização de constantes traduções de sentidos, necessariamente fadadas à opacidade e, portanto, a um resultado sempre inconcluso e provisório.

A dificuldade em classificar os trabalhos de Marcone Moreira em categorias estáveis se reflete no diálogo ambíguo que eles estabelecem com a produção de dois outros artistas contemporâneos brasileiros. A uma primeira visada, os recortes de madeira que expõe remetem aos trabalhos do artista mineiro Celso Renato, o qual também se apropriava, já na década de 1960, de tapumes de madeira, sobras de construções ou pedaços de portas encontradas na rua para – ao contrário de Marcone Moreira, que apenas os escolhe e transporta para outro canto – fazer sobre eles pinturas de extração construtivista, adicionando-lhes, por acréscimo de pigmento, mais uma camada de significados. É inevitável, ainda, aproximar seus trabalhos das pinturas de Emmanuel Nassar, artista também paraense e que partilha, com Marcone Moreira, o interesse sobre o mesmo e impuro repertório visual da região onde moram. Diferem os dois artistas, contudo, em um procedimento construtivo básico: enquanto Emmanuel Nassar se apropria, no mais das vezes, apenas das imagens achadas, refazendo-as sobre suportes variados (às vezes de modo íntegro, outras vezes modificando-as), Marcone Moreira se apropria, adicionalmente, do suporte físico (madeira, nylon ou qualquer coisa mais) onde estão as imagens – antes dispersas em qualquer parte – que o atraem.

Diante de um conjunto de seus trabalhos, pouco se pode dizer, portanto, de modo definitivo. Esta imprecisão não resulta, porém, de deficiências conceituais ou de indecisões construtivas; emerge deles, ao contrário, como constitutiva de sua integridade: sem optar por ser pintura ou objeto e movendo-se entre referências eruditas e populares, apropria-se do que está já no mundo sem reivindicar, entretanto, autoria exclusiva do que resulta de seu gesto. Traz, por fim, para um tempo e um lugar preciso (o momento de cada exposição e o lugar do campo da arte), indícios de um tempo não sabido ao certo e de lugares que são só passagem.


Moacir dos Anjos
2005

3 de jun. de 2010

Texto de Jorge Eiró para minha primeira individual, 2003, Galeria Graça Landeira, Belém -PA
























A Carga-Pesada Histórica:

Quando mencionamos o vasto legado de referências ao trabalho de Marcone Moreira, não se trata de multá-lo por excesso de carga, mesmo porque o permitido contrabando de citações é, by the way, maneirismo autorizado da contemporaneidade. Diga-se, de passagem, que em tal contravenção sempre embarca um certo charme gangster, em especial quando o frete destina-se ao semi-árido artístico do nosso faroeste caboclo. Mas perdura um débito a descoberto com a já considerada tradição moderna que convém aqui ilustrar, não a título moral (sic!) de saldar dívidas estéticas, nem, muito menos, de exercer patrulhamentos rodoviário-didáticos no Tráfego de Marcone. Como remissão, trata-se do bom devedor pós-moderno reconhecer “devo, não nego, e pago quando quiser” e com base na boa arte-educação no trânsito, sinalizar suas estradas, dar pistas (ou pintas?) de seus pontos de partida e situar seu locus no maravilhoso mundo mix da arte contemporânea. Para Marcone, de Marabá, cidade ao sul do Pará, por onde passa a Transamazônica gerando um entroncamento mercantil de produtos e informações, a direção do seu olhar não poderia ser diferente. Afinal, as apropriações indébitas nem sempre levam as carrocerias da ParanáPará ao Pontal do Paranapanema. Marabaixo maracima, o novo bom-selvagem Marcone emergiu boiando nas tábuas da salvação, entre tantos dilúvios do Tocantins/Itacaiunas. Salvou-se da atávica entropia equatorial das representações acadêmicas do pictorescco amazônico ao vislumbrar as possibilidades da high-way Duchamp e aí cantarolou baixinho pra si mesmo o épico do Manduka “Quem me levará sou eu”. Então, like a rolling stone, meteu o pé na estrada e ao longo do percurso seu trabalho foi naturalmente incorporando os múltiplos signos da trajetória estética moderna. Para acompanha-lo nessa viagem sugiro o seguinte roteiro: A partir do intenso fluxo de valores e conceitos garantido pela liberdade de ir e vir na via duchampiana, passa-se obrigatoriamente pelas auto-estradas suprematistas e neoplasticistas de Malevitch e Mondrian, para citar apenas alguns, pois, se não, precisaríamos de um guia onomástico 4 Rodas da História da Arte para mapear tantos cartões-postais da iconografia moderna. Portanto, segue em frente, vai direto nesse rigoroso traçado geométrico evolucionista que desemboca na Belém-Brasília do racionalismo construtivista brasileiro. Aí, entre concretos e neoconcretos, desviando um pouco daquela monótona linha reta de estrada americana, a juventude transviada faz uma contramão no trajeto racionalista e passeia pelas sinuosas curvas do pop brasuca, derrapando perigosamente nas pistas mal conservadas das BR-2003. Tudo só pra garantir emoção na viagem, claro, afinal de contas ninguém é de ferro, só o Amílcar de Castro, e, depois da primeira placa (obra?) enferrujada, faz-se um pit-stop num boteco de beira de estrada pra tomar uma lendo o Manifesto Neoconcreto: “É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o transcende ao fundar nele uma significação nova – que as noções objetivas de tempo, espaço, forma, estrutura, cor, etc., não são suficientes para compreender a obra de arte, para dar conta de sua “realidade”. Bingo! Vamos comer OiticiCaetano? Não sem antes soltar a voz na estrada e fazer a travessia por uma Minas de referências. Já cruzamos a estrada-de-ferro do Amílcar, mas tem ainda Manfredo de Souzaneto e, principalmente, o circuito neo-barroco de Marcos Coelho Benjamin, passagem obrigatória dos carros-de-Beuys e pau-pra-toda-obra daqueles artífices que manipulam sofisticadas artesanias. São tantas as verdades, diria o Leonilson (outro que deixou inumeráveis órfãos bordando seus diários íntimos à beira do caminho). Mas, depois da panamérica utópica do sul maravilha, o filho pródigo sempre pega o Ita[pemirim] de volta ao velho norte, revisitando a gambiarra que deu certo na Estrada Nova do Emmanuel Nassar e ir a lona nas arapucas da Cidade Velha do Emanuel Franco. São tantas as estradas, Marcone, e muita areia pra um caminhãozinho tão novo... É pau, é pedra, mas é só o começo do caminho.

Jorge Eiró

junho/julho 2003